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Inconstitucionalidade EC 103/19 - Aposentadoria por Invalidez


Inconstitucionalidade EC 103/19 - Aposentadoria por Invalidez

Noticiamos aqui outros julgamentos no sentido do afastamento da aplicação da EC 103/2019 em razão de sua inconstuticionalidade e, nessa semana, os segurados obtiveram mais uma vitória!

A 2ª Turma Recursal de Santa Catarina manteve, por maioria de votos, a sentença de primeiro grau que declarou inconstitucional a aplicação da Emenda Constitucional em relação ao cálculo do valor do salário da aposentadoria por invalidez.

Confira a íntegra do voto:

VOTO-VISTA

             Pedi vista para melhor analisar os autos.

             A controvérsia reside na forma de apuração do benefício deferido, pois o magistrado sentenciante declarou incidentalmente a inconstitucionalidade do artigo 26, §2º da EC nº 103/2019, por ofensa aos princípios da igualdade, da proporcionalidade e da razoabilidade.

Com a devida vênia, apresento voto divergente.

             Muito embora compactue com os termos do voto da ilustre Relatora, entendo que no caso concreto se está a analisar a eficácia da norma atual, sendo certo que o consagrado princípio do tempus regit actum não terá aplicação caso confirmada a declaração incidental de inconstitucionalidade.

No tocante à questão trazida a análise, decidiu o magistrado sentenciante:

- Princípio da igualdade

Destaque-se que o controle de constitucionalidade de emenda  constitucional sob a ótica do princípio da igualdade no campo do direito previdenciário já foi objeto de julgamento pelo Supremo Tribunal Federal (ADI 2110 MC, Relator Ministro SYDNEY SANCHES, Tribunal Pleno, julgado em 16/03/2000).

Certo, partindo da premissa que necessariamente o princípio da igualdade (art. 5º, caput, da CF) envolve um conceito de relação, não é de menor importância frisar que, conforme clássica lição de  CELSO ANTÔNIO BANDEIRA DE MELLO ("Conteúdo jurídico do princípio da igualdade". 3ª ed. São Paulo:  Malheiros,  2006.  p.  17), "as discriminações são recebidas como 'compatíveis com a cláusula igualitária apenas e tão-somente quando existe um vínculo de correlação lógica' entre a peculiaridade diferencial acolhida por residente no objeto, e a desigualdade de tratamento em função dela conferida, 'desde que tal correlação não seja incompatível com interesses prestigiados na Constituição.'".

Por sua vez, J. J. GOMES CANOTILHO (Op. cit. p. 428-9), ao tratar do princípio da isonomia e das possibilidades de discrímen, observa:

"A fórmula 'o igual deve ser tratado igualmente e o desigual desigualmente' não contêm o critério material de um juízo de valor sobre a relação de igualdade (ou desigualdade). A questão da 'igualdade justa' pode colocar-se nestes termos: o que é que nos leva a afirmar que uma lei trata dois indivíduos de uma forma igualmente justa? Qual o critério de valoração para a relação de igualdade?

Uma possível resposta, sufragada em algumas sentenças do Tribunal Constitucional, reconduz-se à proibição geral do arbítrio: existe observância da igualdade quando indivíduos ou situações   iguais   não   são   arbitrariamente   ('proibição   do arbítrio')  tratados  como  desiguais.  P or  outras  palavras:  o princípio da igualdade é violado quando a desigualdade de t ratamento surge como arbitrária. O arbítrio da desigualdade seria condição necessária e suficiente da violação do princípio da igualdade. Embora ainda hoje seja corrente a associação do princípio da igualdade com o princípio da proibição do arbítrio, este princípio, como simples princípio de limite, será também insuficiente se não transportar já, no seu enunciado normativo-material, critérios possibilitadores da valoração das relações de igualdade ou desigualdade. Esta a justificação de o princípio da proibição do arbítrio  andar  sempre  ligado  a  um fundamento material ou critério material objectivo. Ele  costuma ser sintetizado da forma seguinte: existe uma violação arbitrária da igualdade jurídica quando a disciplina jurídica não se basear num: (i) fundamento sério; (ii) não tiver um s entido legítimo; (iii) estabelecer diferenciação jurídica sem u m fundamento razoável. Todavia, a proibição do arbítrio intrinsicamente determinada pela exigência de um 'fundamento razoável' implica, de novo, o problema da 'qualificação' desse fundamento, isto é, a qualificação de um fundamento como razoável aponta para um 'problema de valoração'.

A necessidade  de  valoração  ou  de  critérios  de qualificação b em como a necessidade de encontrar elementos de comparação subjacentes ao caráter relacional do princípio da igualdade implicam: (1) a insuficiência do arbítrio como fundamento adequado de valoração; (2) a imprescindibilidade d a análise da natureza, do peso, dos fundamentos ou motivos justificadores de soluções diferenciadas; (3) insuficiência da c onsideração do princípio da igualdade como um direito de natureza apenas defensiva ou negativa. Esta ideia de igualdade justa  deverá  aplicar-se  mesmo  quando  estamos  em  face  de medidas   legislativas   de   graça   ou   de   clemência (perdão, a mnistia), pois embora se trate de medidas que, pela sua n atureza, transportam referências individuais ou individualizáveis, elas não dispensam a existência de fundamentos materiais justificativos de eventuais tratamentos diferenciadores.

Sem embargo, a discussão jurídica presente neste caso concreto passa, inevitavelmente, pela aferição da higidez do discrímen eleito pelo constituinte derivado.

Frente a esse ponto de partida, conforme bem literaliza JOÃO BATISTA LAZZARI (Op. cit. p. 101-3):

"A mudança no cálculo da aposentadoria por invalidez representa uma perda significativa de renda do segurado que se tornar incapaz de forma permanente para o trabalho, salvo na hipótese de a incapacidade ter resultado de acidente do trabalho, de doença profissional e de doença do trabalho.

Semelhante diferenciação ocorreu no passado, na redação original  da  Lei  8.213/1991,  sendo  corrigida posteriormente pela   Lei  9.032/1995.  E agora   volta   à   baila   essa regra discriminatória, sem razão de ordem contributiva que justifique pagar menor valor para situações isonômicas."

A propósito, interessante observar que a exposição de motivos da Lei n. 9.032/95, naquilo que se refere à justificativa para a "equalização dos valores dos benefícios acidentários com os demais benefícios previdenciários", amparava-se nos seguintes argumentos:

  1. O anteprojeto ao propor também a alteração de dispositivos referentes aos acidentes do trabalho busca dar solução ao verdadeiro caos que hoje existe na área, com interpretações as mais diversas, além de fraudes e procedimentos irregulares. Existem mais de 300 mil ações acidentarias em andamento na justiça brasileira. que poderão assim    serem    eliminadas    de    imediato.    Aproposta de e qualização dos valores dos benefícios acidentários com os d emais benefícios previdenciários será elemento importante para que sejam reduzidas as ações judiciais contra a P revidência Social assegurando melhores condições de calculo d e beneficio para aposentados e pensionistas.

(…)

  1. Finalmente. ressalto que. com as medidas ora propostas. o governo de Vossa Excelência dará um grande passo na busca da desejada racionalização da atual estrutura, e da maior eficiência do sistema. A recuperação do adequado padrão de operacionalidade do sistema e sem dúvida condição fundamental para a reengenharia das funções que devem ser executadas pelo moderno Estado social. reformado para bem cumprir uma legislação efetivamente garantidora dos direitos sociais fundamentais.

Veja-se que, ao contrário do que seria incialmente lícito pressupor - que a mudança visava ao reconhecimento da isonomia entre as causas acidentárias e não acidentárias que viessem a acarretar a incapacidade laboral -, o intento do legislador para a alteração do coeficiente de cálculo, à época, assumiu caráter eminentemente pragmático, essencialmente voltado à redução de litígios - o que inegavelmente não afasta a validade da proposição e nem retira o mérito da medida, de resto dirigida a "maior eficiência do sistema".

Pois bem, igualdade. e ntendo, efetivamente, existir ofensa ao princípio da  Isso porque, não se mostra despropositado e tampouco redundante sublinhar o resgate do objetivo elementar da Previdência Social, consistente em assegurar os meios indispensáveis de manutenção aos segurados em face da ocorrência de riscos sociais que imponham prejuízo manifesto à sua capacidade de trabalhar e de gerar renda para si e seus dependentes. Trata-se, pois, de política pública, constitucionalmente prevista, intimamente relacionada ao princípio da dignidade da pessoa humana, uma vez que asseguradora do mínimo existencial.

Avulta, nesse contexto, a importância dos benefícios por incapacidade, benefícios não programáveis calcados em situação de fato que "mais se coaduna à noção de risco social, enquanto evento incerto que determina dificuldade ou impossibilidade de auto- sustento pelos segurados do sistema." (cfr. SIMONE BARBISAN FORTES e LEANDRO PAULSEN, "Direito da seguridade social - prestações e custeio da previdência, assistência e saúde". Porto Alegre: Livraria do Advogado, 2005. p. 106).

Note-se,  não  há  dúvida  de  que  se   encontra   vigente   ainda   hoje diferenciação de tratamento normativo entre os benefícios previdenciário e acidentário, tais como segurados abrangidos, carência, custeio, efeitos trabalhistas e até mesmo competência para o processamento e julgamento das causas a eles relacionadas.

O que se perquire neste momento, contudo, é se a retomada da distinção do coeficiente de cálculo para fins de apuração da RMI operada pela EC n. 103/2019 decisivamente conflagra violação ao princípio da isonomia.

Sobre o tema, J. R. FEIJÓ COIMBRA, discorrendo sobre a proteção contra o infortúnio do trabalho, já dispunha em sua obra ("Direito previdenciário brasileiro". 10ª ed. Rio de Janeiro: Edições Trabalhistas, 1999. p. 184-5):

"Entre nós, Cesarino Junior alonga-se em oportunas considerações: 'A existência dessa lei especial só se compreendia nos começos da legislação social e não hoje em dia, em que se estão realizando, ou pelo menos programando, em quase toda parte, os seguros sociais. Com efeito, quais podem ser as consequências dos acidentes de trabalho? Evidentemente,   a   morte   ou   invalidez   (total   ou   parcial), permanente  ou  temporária. O ra  bem,  do  ponto  de  vista que determina atualmente a obrigação legal de sua reparação, e que consiste em ser o trabalho o meio de subsistência do h ipossuficiente, pode-se afirmar que as consequências dos a cidentes de trabalho sejam essencialmente distintas das produzidas pela morte ou incapacidade ocasionadas por outras c ausas, como as enfermidades e os acidentes estranhos ao t rabalho? Está claro que não'. (...) Se é de solidariedade que se cuida, faça-se a proteção na sua plena feição social, esquecidos de plano os conceitos de culpa e de risco criado. (...) A mesma proteção - e de forma mais justa - se alcançaria, dando maior e mais exata amplitude às leis gerais de amparo social. Bastariam algumas alterações, de escassa monta. (...) Por outro lado, ter-se-ia de considerar a desigualdade entre as prestações devidas por acidentes e as decorrentes de outras causas.  Aí,  contudo,  a o  contrário  de  dar-se  maior  valor às prestações devidas por acidentes, dever-se-ia igualar-lhes o v alor, seja quando decorrentes do infortúnio do trabalho, seja quando ditadas por causas a ele alheias, pois a necessidade do t rabalhador e da sua família é igual, seja qual for a origem dos males de que se deplore."

Ora bem, não há como deixar de reconhecer, na espécie, violação ao princípio da isonomia na medida em que a finalidade protetiva da norma que assegura a proteção social aos benefícios por incapacidade, seja de natureza acidentária ou não, é a mesma.

Mais: inexiste qualquer justificativa fundada em razão objetiva para o retorno à distinção do coeficiente de cálculo entre os benefícios acidentários e não acidentários. Certo, mesmo que se considere a recomposição do equilíbrio financeiro e atuarial como causa justificante, não há menção ou fundamento específico para que houvesse o aviltamento do direito em relação a tão somente uma situação de fato ou mesmo categoria de segurado.

Em outras palavras, o discrímen, o fator de diferenciação adotado, não guarda correlação lógica com a desequiparação. E, a partir daí, como acima exposto, não parece existir maior dúvida de que "a desigualdade de tratamento surge como arbitrária" e encontra-se destituída de um "fundamento razoável".

Vale dizer, o que se tem é uma indevida discriminação, que não detém contornos de razoabilidade, uma vez que a causa ensejadora da incapacidade não possui correlação lógica necessária com a proteção social conferida à contingência prevista na legislação de regência.

Nessa linha de intelecção, colhe-se do seguinte excerto extraído do judicioso voto proferido pelo e. Desembargador Federal ROGER RAUPP RIOS no julgamento da AC 5016675-53.2014.4.04.7100, cuja fundamentação ora se agrega por bem explicitar quando se concretiza o aviltamento do princípio da igualdade na seara previdenciária e como se opera, legitimamente, o controle judicial diante desse contexto:

"Nesta perspectiva, o  direito  pleiteado  é  a  correção  de  uma discriminação violadora da igualdade na proteção social conferida pelo sistema normativo constitucional e infraconstitucional, decorrente de o legislador previdenciário infraconstitucional excluir certos segurados, sem fundamento racional e desprovido de lógica, de determinada proteção social.

No caso concreto, o acesso à prestação previdenciária requerida, entendido como direito derivado, é obtido judicialmente em virtude da proteção jurídica-fundamental típica dos direitos clássicos de igualdade e de não- discriminação (ditos direitos negativos), pois, como decidiu o Tribunal Constitucional português, " a partir do momento em que o Estado cumpre (total ou parcialmente) as tarefas c onstitucionalmente impostas para realizar um direito social, o r espeito constitucional deste deixa de consistir (ou deixa de c onsistir apenas) numa obrigação positiva, para se t ransformar ou passam também a ser uma obrigação  negativa.

O Estado, que estava obrigado a atuar para dar satisfação ao direito social, passa a estar obrigado a abster-se de atentar c ontra a realização dada ao direito social.

(c) Assim sendo, o tribunal está agindo não como legislador positivo, não está inovando. Ele está aplicando a clássica proteção antidiscriminatória, de natureza negativa, ao dizer o que o legislador, no sistema que ele mesmo erigiu, não pode fazer: ele não pode excluir direito derivado à proteção social para uns e favorecer outros. Dito de outro modo: não há e spaço para opção legislativa que viole o dever de observânciaà igualdade, seja diretamente, seja, como no caso, de direito d erivado a prestação social."

Há, aqui, portanto, razão suficiente para a conclusão pela conformação indevida do direito social em análise, a exigir a correção judicial de tal violação do princípio da igualdade.

- Princípios da proporcionalidade e da razoabilidade

Passa-se a analisar, doravante, eventual ofensa aos princípios da proporcionalidade e da razoabilidade.

Sinale-se que, como preleciona INGO WOLFGANG SARLET ("A eficácia dos direitos fundamentais". 7ª ed. Porto Alegre: Livraria do Advogado, 2007. p. 492):

"mesmo os direitos fundamentais a prestações são i nequivocamente autênticos direitos fundamentais, constituindo (justamente em razão disto) direito imediatamente aplicável, nos termos do disposto no art. 5º, § 1º, de nossa Constituição. A exemplo das demais normas constitucionais e independentemente de sua forma de positivação, os direitos fundamentais prestacionais, por menor que seja sua densidade normativa ao nível da Constituição, sempre estarão aptos a gerar um mínimo de efeitos jurídicos, sendo, na medida desta aptidão, diretamente aplicáveis, aplicando-se-lhes (com muito mais razão) a regra geral, já referida, no sentido de que inexiste norma constitucional destituída de eficácia e aplicabilidade."

Essa linha interpretativa, que reconhece os direitos sociais como autênticos direitos fundamentais, diga-se, vem sendo sufragada pela jurisprudência  do  Supremo  Tribunal  (ADI  5938,  Relator   Ministro ALEXANDRE DE MORAES, Tribunal Pleno, julgado em 29/05/2019; RE 626489, Relator Ministro ROBERTO BARROSO, Tribunal Pleno, julgado em 16/10/2013), como resta evidenciado do voto do e. Ministro ALEXANDRE DE MOARES, in verbis:

"O conjunto dos Direitos sociais foi consagrado constitucionalmente como uma das espécies de direitos fundamentais, caracterizando-se como verdadeiras liberdades positivas, de observância obrigatória em um Estado Social de Direito, tendo por finalidade a melhoria das condições de vida aos hipossuficientes, visando à concretização da igualdade social, e são consagrados como fundamentos do Estado Democrático, pelo art. 1º, IV, da Constituição Federal."

Esse ponto de partida deve ser destacado, na medida em que estabelece o art. 60, § 4º, I, da CF:

§ 4º N ão será objeto de deliberação a proposta de emenda t endente a abolir:

  1. - a forma federativa de Estado;

  1. - o voto direto, secreto, universal e periódico; III - a separação dos Poderes;

IV - o s direitos e garantias individuais.

Note-se que essa verdadeira limitação material ao poder de reforma, não obstante a literalidade do texto, há de ser lida e interpretada para nela se compreender abrangidos, inclusive, os direitos sociais de índole prestacional. Deveras, de acordo com INGO WOLFGANG SARLET e RODRIGO BRANDÃO (in "Comentários à Constituição do Brasil". J. J. GOMES CANOTILHO et al. 1ª ed. 4ª tir. São Paulo: Saraiva/Almedina, 2013. p. 1.135):

"(...) parece-nos correta a doutrina majoritária ao salientar que o constituinte de 1988 conferiu o 'status' de cláusulas pétreas aos direitos fundamentais de primeira, segunda e t erceira 'dimensão', sejam eles direitos de defesa ou prestacionais. Isto porque o sistema constitucional de proteção dos direitos fundamentais, cuja eficácia reforçada se revela na aplicabilidade imediata das normas definidoras de direitos e garantias fundamentais (art. 5º, § 1º), bem como na sua proteção reforçada quanto a ação erosiva do constituinte- reformador (art. 60, § 4º, IV), caracteriza-se pela unicidade. Com efeito, de u ma leitura sistêmica da Constituição de 1988 n ão se verifica hierarquia ou destaque conferido aos direitos d e defesa em detrimento dos direitos prestacionais, ou de direitos de uma dimensão em prejuízo das demais. Ao contrário, percebe-se uma fina sintonia entre o constituinte de 1988 e a tese da indivisibilidade e a interdependência das dimensões de direitos fundamentais, a qual vem gozando de primazia no direito internacional dos direitos humanos."

Daí porque, como precisamente expôs o e. Ministro EDSON FACHIN (ADI 5935, Tribunal Pleno, julgado em 22/05/2020):

"(...)    o constituinte           derivado pode           refazer                 desenhos institucionais, mas não pode desfigurá-los. Determinar o limite dessa atividade é paradoxo entre (1) não permitir a eliminação do núcleo essencial da Constituição, mediante decisão ou gradual processo de erosão, nem ensejar que uma interpretação ortodoxa ou atípica acabe por colocar a ruptura como alternativa à impossibilidade de um desenvolvimento constitucional legítimo (ADI 2.395, Rel. Min. Gilmar Mendes, Tribunal Pleno, DJe 23.05.2008, p. 129) e entre (2) encontrar o ponto de equilíbrio que preserve o núcleo de identidade da Constituição sem promover o engessamento da deliberação democrática por parte do Congresso (MS 34.448-MC, Decisão Monocrática, Min. Roberto Barroso, DJe 13.10.2016, p. 11).

Assim, a partir da compreensão unitária dos direitos fundamentais e da limitação material imposta ao poder de reforma, indispensável reconhecer que a conformação do direito social, na hipótese aquele previsto no art. 201, I, da CF, deve se dar em consonância com o princípio da proporcionalidade ("limite dos limites"), inclusive e precipuamente sob a perspectiva da proibição de proteção insuficiente.

Nessa ordem de ideias, GILMAR FERREIRA MENDES e PAULO GUSTAVO GONET BRANCO (Op. cit. p. 257-8 e 689) assim discorrem sobre o tema:

"A doutrina identifica como típica manifestação do excesso de poder legislativo a violação do princípio da proporcionalidade ou da proibição de excesso (Verhältnismässigkeitsprinzip; Ubermassverbot), que se revela mediante contraditoriedade, incongruência e irrazoabilidade ou inadequação entre meios e fins.

(...)

A utilização do princípio da proporcionalidade ou da proibição de excesso no direito constitucional envolve, como observado, a apreciação da necessidade (Erforderlichkeit) e adequação (Geeignetheit) da providência legislativa.

(...)

O Tribunal Constitucional explicitou, posteriormente, que 'os meios utilizados pelo legislador devem ser adequados e necessários à consecução dos fins visados. O meio é adequado se, com a sua utilização, o evento pretendido pode ser alcançado; é necessário se o legislador não dispõe de outro meio eficaz, menos restritivo aos direitos fundamentais.

A aferição da constitucionalidade da lei em face do princípio da proporcionalidade ou da proibição de excesso contempla os próprios limites do poder de conformação outorgado ao legislador.

(...)

Ao lado da ideia da proibição do excesso tem a Corte Constitucional alemã apontado a lesão ao princípio da proibição da proteção insuficiente.

Schlink observa, porém, que se o Estado nada faz para atingir um dado objetivo para o qual deva envidar esforços, não parece que esteja a ferir o princípio da proibição da insuficiência, mas sim um dever de atuação decorrente de dever de legislar ou de qualquer outro dever de proteção. Se se comparam, contudo, situações do âmbito das medidas protetivas, tendo em vista a análise de sua eventual insuficiência, tem-se uma operação diversa da verificada no âmbito da proibição de excesso, na qual se examinam as medidas igualmente eficazes e menos invasivas. Daí concluiu que 'a conceituação de uma conduta estatal como insuficiente (untermässig), porque ela não se revela suficiente para uma proteção adequada e eficaz', nada mais é, do ponto de vista  metodológico, do que considerar referida conduta como desproporcional em sentido estrito (unverhältnismässig im engeren Sinn).

(...)

"Os direitos fundamentais não contêm apenas uma proibição de intervenção (Eingriffsverbote), expressando também um postulado de proteção (Schutzgebote). Haveria, assim, para utilizar expressão de Canaris, não apenas a proibição de excesso (Übermassverbote) mas também a proibição de proteção insuficiente (Untermassverbote). E tal princípio tem aplicação especial no âmbito dos direitos sociais."

C erto, diante de tais premissas, mostra-se possível o reconhecimento d e que a previsão inserta no art. 26, § 2º, III, da EC n. 103/2019 a caba por se mostrar ofensiva à proporcionalidade.

De fato, deve ser destacada, uma vez mais, a circunstância do benefício   por   incapacidade   permanente   possuir    a    natureza de prestação não programável. Esse aspecto guarda indiscutível relevância, porquanto a conformação legislativa do direito fundamental, tal como levada a efeito, conflagra proteção insuficiente, principalmente diante do paralelismo com o regime estabelecido para os benefícios decorrentes de incapacidade temporária ou definitiva de natureza acidentária.

Deveras, impende frisar o contexto jurídico-constitucional que elege como valores fundamentais a "dignidade da pessoa humana" e os "valores sociais do trabalho" (art. 1º, III e IV, da CF), impõe dentre os objetivos da República a construção de uma "sociedade livre, justa e solidária", voltada à promoção do "bem de todos, sem preconceitos de origem, raça, sexo, cor, idade e quaisquer outras formas de discriminação" (art. 3º, I e IV, da CF), assim como preconiza que a ordem econômica seja "fundada na valorização do trabalho humano" e que "tem por fim assegurar a todos existência digna, conforme os ditames da justiça social" (art. 170, caput, da CF), é preciso sublinhar que a ordem social, que tem na previdência social uma das suas mais expressivas formas de atuação e, pois, concretização, "tem como base o primado do trabalho, e como objetivo o bem-estar e a justiça sociais" (art. 193, caput, da CF).

Ora bem, a par disso, não é de menor importância destacar a imposição constitucional para que a Seguridade Social volte seu conjunto de ações observando a "seletividade e distributividade na prestação dos benefícios e serviços" (art. 194, III, da CF). Sem embargo, conforme explicitam DANIEL MACHADO DA ROCHA e JOSÉ ANTONIO SAVARIS (Op. cit. p. 132), "O princípio da seletividade e distributividade destina-se a aperfeiçoar a universalidade, mediante a identificação do nível de proteção orientada não apenas às contingências sociais intrinsicamente consideradas, mas àquilo que elas podem, em relação a determinadas pessoas, de fato causar perda substancial de recursos para subsistência com dignidade."

E, neste ponto, torna-se evidente e possível concluir que a alteração promovida pela EC n. 103/2019, decorrente da redação conferida por seu  art.  26,  §  2º,  III,  para  além  de  desatender  o  princípio  da seletividade  e  distributividade,  traduz  medida  legislativa  que  n ão

e ncontra amparo no princípio da proporcionalidade (subprincípio da a dequação) (cfr. CLÁUDIO PEREIRA DE SOUZA e DANIEL SARMENTO, "Direito constitucional: teoria, história e métodos de trabalho. 2ª ed. 6ª reimp. Belo Horizonte: Fórum, 2019. p. 483), uma vez que o núcleo essencial do direito à aposentadoria em razão da  incapacidade permanente (não acidentária) sofreu sensível aviltamento a partir do momento em que prevê coeficiente de cálculo que permite renda mensal inicial significativamente inferior em relação aquela estabelecida para o benefício de incapacidade temporária. Além disso, equipara o critério de cálculo com as demais aposentadorias programáveis de natureza voluntária. Ou seja, a rigor, o novo tratamento normativo conferido à aposentadoria por invalidez desconsidera a contingência social (incapacidade permanente), dotada de imprevisibilidade, capaz de afetar "mais decisivamente determinadas pessoas de modo a ameaçar-lhes a capacidade de manutenção" (cfr. DANIEL MACHADO DA ROCHA e JOSÉ ANTONIO SAVARIS, Op. cit. p. 132).

De fato, prosseguindo nessa linha de raciocínio, tem-se, ainda, em decorrência direta do processo de reforma levado a efeito pelo constituinte derivado, a previsão, insculpida no art. 26, § 3º, II, da EC n. 103/2019, no sentido de que, no caso de aposentadoria por incapacidade permanente, quando decorrente de acidente de trabalho, de doença profissional e de doença do trabalho, "O valor do benefício de aposentadoria corresponderá a 100% (cem por cento) da média aritmética definida na forma prevista no caput e no § 1º." Note-se, não se extrai do texto constitucional, presente o art. 201, I, da CF e as contingências sociais que visa a proteger, razão ou justificativa bastante que permita ao constituinte derivado distinguir o critério de cálculo de benefícios que, rigorosamente, voltam-se à proteção dos mesmos riscos. Nessa ótica, fica evidenciada, também aqui, a proteção deficiente, ofensiva, pois, à proporcionalidade, quanto ao tratamento conferido aos benefícios decorrentes de incapacidade permanente de causa não acidentária, na medida em que, face o cotejo com o critério de cálculo estabelecido no art. 26, § 3º, II, da EC n. 103/2019, é possível constatar a inadequação da alteração normativa, porquanto caracterizadora de evidente esvaziamento do núcleo essencial do direito fundamental em comento e,    assim,    conducente     ao     reconhecimento     de    inobservância da limitação material prescrita no art. 60, § 4º, IV, da CF.

Por outro lado, deve ser considerado para a solução judicial desta causa, ainda, o teor do art. 28.2."e", da Convenção Internacional sobre os Direitos das Pessoas com Deficiência, incorporada no ordenamento jurídico constitucional de acordo com o rito do art. 5º, § 3º, da CF (Decreto n. 6.949, de 25 de agosto de 2009), que dispõe sobre o d ireito ao padrão de vida e proteção social adequados:

2. Os Estados Partes reconhecem o direito das pessoas com deficiência à proteção social e ao exercício desse direito sem discriminação baseada na deficiência, e tomarão as medidas apropriadas para salvaguardar e promover a realização desse direito, tais como:

  1. Assegurar igual acesso de pessoas com deficiência a serviços de saneamento básico e assegurar o acesso aos serviços, dispositivos e outros atendimentos apropriados para as necessidades relacionadas com a deficiência;

  1. Assegurar o acesso de pessoas com deficiência, particularmente mulheres, crianças e idosos com deficiência, a programas de proteção social e de redução da pobreza;

  1. Assegurar o acesso de pessoas com deficiência e suas famílias em situação de pobreza à assistência do Estado em relação a seus gastos ocasionados pela deficiência, inclusive treinamento adequado, aconselhamento, ajuda financeira e cuidados de repouso;

  1. Assegurar o acesso de pessoas com deficiência a programas habitacionais públicos;

e)Assegurar igual acesso de pessoas com deficiência a programas e benefícios de aposentadoria. (grifei)

E, aqui, guarda dimensão maior a análise quanto aos reflexos advindos pela edição do indigitado dispositivo enquanto medida para implementação, pelo Estado brasileiro, do direito inserido com status constitucional após a incorporação no direito interno de compromisso internacional. Nessa linha de intelecção, a EC n. 103/2019 aponta novamente para a caracterização de medida inadequada sob o ângulo do dever de proteção (proibição de insuficiência). Com efeito, ao emprestar ao cálculo de benefício índice significativamente inferior na hipótese daquele que se encontrar atingido por incapacidade permanente, e, pois, muito provavelmente submetido a impedimentos de longo prazo de natureza física, mental, intelectual ou sensorial, os quais, em interação com diversas barreiras, podem obstruir sua participação plena e efetiva na sociedade em igualdade de condições com as demais pessoas, acaba por consagrar d éficit normativo em relação a assegurar ao segurado com deficiência "igual acesso" ao direito à aposentadoria.

Frise-se que o presente entendimento, admitindo o reconhecimento da ofensa ao princípio da proporcionalidade como proibição de proteção deficiente no âmbito dos direitos sociais, reconhecendo, portanto,     um     dever     de     proteção     estatal     dos     direitos fundamentais,   e ncontra   amparo   na   jurisprudência   do  Supremo T ribunal Federal (RE 778889, Relator Ministro ROBERTO BARROSO, Tribunal Pleno, julgado em 10/03/2016; ADI 5938, Relator Ministro ALEXANDRE DE MORAES, Tribunal Pleno, julgado em 29/05/2019; ADI 6327 MC-Ref, Relator Ministro EDSON FACHIN, Tribunal Pleno, julgado em 03/04/2020; ADI 5760, Relator Ministro ALEXANDRE DE MORAES, Tribunal Pleno, julgado em 13/09/2019).

De todo modo, para além da constatação da ausência de proporcionalidade por proibição da proteção deficiente, a configuração jurídica atual advinda da redação do art. 26, § 2º, III, da EC n. 103/2019 traduz m edida destituída de razoabilidade. Veja-se que há evidente contradição em um ordenamento que propicia maior proteção social aquele que se encontra incapacitado em menor grau em face daquele atingido por contingência social mais gravosa (ausência de coerência interna). De outra parte, não se constata existir coerência externa enquanto "harmonia entre a medida estatal e os valores da sociedade e do ordenamento jurídico  como  um  todo"  (cfr.  CLÁUDIO  PEREIRA  DE  SOUZA  NETO  e  DANIEL SARMENTO, Op. cit., p. 491). De fato, não parece existir a menor dúvida de que, ainda que paulatinamente, principalmente após a edição do Decreto n. 6.949/2009, mesmo antes da CF 1988 vem existindo avanço expressivo - a despeito de recente retrocesso verificado com a edição do Decreto n. 10.502/2020, cuja eficácia restou suspensa pelo Supremo Tribunal Federal na ADI 6590 - na formulação de políticas públicas em favor das pessoas com deficiência, inclusive no âmbito da Previdência Social (v.g. LC n. 142/2013), de modo que a norma, tal como posta, milita amplamente em desfavor desse panorama jurídico protetivo então vigente antes da edição da EC n. 103/2019.

Por fim, e não menos importante, há também malferimento à ideia de   razoabilidade   como   equidade.   Certo,   novamente   de acordo

com CLÁUDIO PEREIRA DE SOUZA NETO e DANIEL SARMENTO (Op. cit. 491), "Esta faceta da razoabilidade é mobilizada quando se verifica que a aplicação de uma norma geral e abstrata sobre um caso concreto produziria resultados profundamente injustos ou inadequados." É o que se constata na situação posta em julgamento. Ora, caso constatada a incapacidade definitiva, sem relação com acidente de trabalho, após o advento da EC n. 103/2019, aquele que até então fruíra auxílio-doença (incapacidade temporária) e conte com tempo de filiação inferior a 20 (vinte) anos, se homem, ou 15 (quinze) anos, no caso da mulher, terá direito a apenas 60% da média do salário de benefício. Diversamente, o segurado titular de auxílio- doença, continuará regido pelo art. 61 da Lei n. 8.213/91, e, assim, terá renda equivalente a 91% da média do salário de benefício. Vale dizer, a justiça do caso concreto, valor fundamental ao lado da segurança jurídica, fatalmente soçobraria nesse contexto. Certo, como bem destaca FRANCISCO AMARAL ("Direito civil - introdução. 6ª ed Rio de Janeiro: Renovar, 2006. p. 16), "A justiça representa, antes de tudo, uma preocupação com a 'igualdade', o que pressupõe a correta aplicação das regras de direito, evitando-se o arbítrio, e com a 'proporcionalidade', isto é, tratar igualmente os iguais e desigualmente os desiguais, mas na proporção de sua desigualdade e de acordo com seus méritos. A cada um de acordo com suas necessidades e exigindo-se de cada um conforme suas possibilidades."

Tudo considerado, portanto, por compreender presente ofensa aos princípios da  igualdade,  da  proporcionalidade  e  da  razoabilidade, d eclaro incidentalmente a inconstitucionalidade do a rt. 26, §2º, III, da EC n. 103/2019, afastando a aplicação do referido preceito legal a este caso concreto, com efeitos "ex tunc", reconhecendo, pois, a incidência do art. 44 da Lei n. 8.213/91, exclusivamente para admitir a utilização do coeficiente correspondente a 100% do salário de benefício para a apuração da RMI do benefício de aposentadoria por invalidez/aposentadoria por incapacidade permanente, devendo ser observado, para tanto, em relação ao período básico de cálculo, o caput do art. 26 da EC n. 103/2019, diante da higidez constitucional deste último enunciado normativo (art. 26, caput, da EC n. 103/2109).

 

Em contraponto, a autarquia sustenta que os benefícios por incapacidade acidentário e previdenciário não são equivalentes, pois para a cobertura das despesas com os benefícios decorrentes do acidente de trabalho é legalmente prevista a contribuição SAT; e que a norma não ofende os princípios da razoabilidade e proporcionalidade, pois adta critérios uniforme entre RGPS e RPPS, observando a proporcionalildade entre contributivade e proteção previdenciária.

Inicialmente confirmo pelos próprios fundamentos o reconhecimento da legitimidade do controle incidental de constitucionalidade enquanto não julgada a ADI 6279.

Com relação ao mérito, confirmo igualmente a sentença pelos próprios fundamentos, para manter a declaração incidental de inconstitucionalidade do artigo 26, §2º da EC nº 103/2019, por ofensa aos princípios da igualdade, da proporcionalidade e da razoabilidade.

Pagará o INSS honorários advocatícios fixados em 10% do valor das parcelas vencidas até a data da prolação da sentença (Súmula nº 111 do STJ), com a ressalva de que a condenação não pode ser inferior ao salário mínimo vigente.

             Ante o exposto, voto por NEGAR PROVIMENTO AO RECURSO DO INSS.

Acesse: Processo n.º 5008379-08.2020.4.04.7205/SC

Fonte: https://www.conjur.com.br/2021-ago-17/justica-considera-inconstitucional-valor-menor-aposentadoria-invalidez

Publicado em 18/08/2021.