SENTENÇA EM EMBARGOS DE DECLARAÇÃO
Trata-se de embargos de declaração opostos pelo INSS sob o argumento de que haveria contradição na sentença de homologação de acordo, por ter constado que a RMI da aposentadoria por incapacidade permanente seria apurada com base no auxílio-doença originalmente concedido (majorando-se de 91% para 100% do salário de benefício), sendo que a proposta de acordo previa o cálculo da RMI conforme apurado pelo INSS, o que implicaria incidência do regime jurídico instituído pela EC nº 103/2019 (reduzindo-se o valor de 91% para 60% do salário de benefício).
Embargos improvidos por falta de contradição, omissão ou obscuridade, afinal, a insurgência do autor não recai sobre vícios intrínsecos do julgado, mas sim apenas demonstram seu inconformismo com o teor da fundamentação da sentença.
O art. 26, §§ 2º e 5º, da EC nº 103/2019 alterou a regra de cálculo da RMI da aposentadoria por incapacidade permanente ("aposentadoria por invalidez") até que Lei discipline o cálculo dos benefícios do RGPS. Impôs valor correspondente a 60% da média aritmética simples dos salários de contribuição no PBC, limitada ao valor máximo do salário de contribuição do RGPS, com acréscimo de 2% para cada ano de contribuição que exceder o tempo de 20 anos de contribuição para segurados homens ou 15 anos de contribuição para seguradas mulheres. Foi expressamente excepcionada da incidência dessa limitação as aposentadorias que decorrerem de acidente de trabalho, de doença profissional e de doença do trabalho (art. 26, § 3º, inciso II, da EC 103/2019), mantendo-se para estas o valor da RMI em 100% da média aritmética simples dos salários de contribuição no PBC. Ocorre que a aludida Emenda Constitucional não alterou a RMI do benefício de auxílio-doença, que continua sendo de 91% do salário de benefício, limitado à média aritmética simples dos últimos 12 salários-de-contribuição, nos termos dos arts. 61 e 29, § 10, da LBPS.
Com isso, instalou-se no regime jurídico previdenciário brasileiro uma esdrúxula incongruência, pois o segurado acometido por uma incapacidade mais severa faz jus a um salário de benefício 31% menor que o acometido por uma incapacidade mais branda. A falta de consonância da regra do art. 26, §§ 2º e 5º, da EC nº 103/2019 com o regramento dos benefícios por incapacidade é tamanha que, por força de sua incidência, até mesmo o titular de aposentadoria por invalidez com o acréscimo de 25% previsto no art. 45 da Lei 8.213/91 percebe um salário-de-benefício inferior ao do titular de auxílio-doença previdenciário que, por princípio, tem uma incapacidade de menor grau limitante.
Essa regra não faz o menor sentido. Estabelece que um segurado em gozo de auxíliodoença receba remuneração bem superior a um segurado aposentado por invalidez. É surreal! Imaginese um segurado em gozo de auxílio-doença que tenha um agravamento em sua incapacidade e passe a fazer jus à conversão do benefício em aposentadoria por invalidez. Pela nova regra da EC nº 103/2019, ele teria uma redução no valor da remuneração na ordem de mais de 30% no valor do benefício, e não um acréscimo como deveria ser por uma questão de lógica e justiça. Um verdadeiro despautério!
A situação gerada pela EC 103/2019 no ordenamento previdenciário nacional pode ser diagnosticada, segundo a doutrina de Norberto Bobbio (Teoria do Ordenamento Jurídico. 2 ed. São Paulo: EDIPRO, 2014, pp. 92-93), como uma antinomia imprópria, especificamente a chamada “antinomia de valoração”, caracterizada, não pela incompatibilidade normativa, mas sim pela injustiça e, consequentemente, pela violação à isonomia. Não se verifica um tratamento isonômico o tratamento díspar dado pelo Estado através da Previdência Social, favorecendo financeiramente um segurado acometido de uma incapacidade parcial ou temporária em detrimendo daquele acometido de uma limitação funcional total e definitiva.
A injustiça da norma do art. 26, §§ 2º e 5º, da EC 103/2019 consubstancia-se na contrariedade ao princípio da razoabilidade, o qual limita a atuação do Estado na produção de normas jurídicas e encontra fundamento na garantia do “ substantive due process of law” (art. 5º, LIV, da CF). Segundo a doutrina do Ministro Luís Roberto Barroso (Interpretação e Aplicação da Constituição : fundamentos de uma dogmática constitucional transformadora. 3ª ed. São Paulo: Saraiva, 1999, p. 217), tal princípio exige uma relação racional e proporcional entre motivos, meios e fins visados pelo Legislador (razoabilidade interna), bem como a aferição da compatibilidade com valores expressos e implícitos do Texto Constitucional (razoabilidade externa). No que concerne especificamente ao regime jurídico previdenciário brasileiro, os fins que devem ser buscados pelo Legislador constam expressamente do parágrafo único do art. 194 da CF, que arrola os objetivos da organização da Seguridade Nacional, dentre os quais a seletividade na prestação dos benefícios e serviços (inciso III) e a irredutibilidade do valor dos benefícios (inciso IV). A seletividade na prestação dos benefícios e serviços refere-se à necessária seleção dos riscos sociais a serem cobertos pelo sistema de seguridade social, visando à garantia do mínimo vital suficiente para a sobrevivência com dignidade. Com o advento do art. 26, §§ 2º e 5º, da EC 103/2019, a proteção à contingência da incapacidade laborativa ficou flagrantemente insuficiente, especialmente no que concerne à incapacidade permanente, dada a redução drástica da RMI do benefício previdenciário, contrariando, assim, o princípio da seletividade. Nota-se também uma patente incompatibilidade entre a regra do art. 26, §§ 2º e 5º, da EC 103/2019 e o fim previsto no art. 194, inciso IV, da CF, já que ela implica uma evidente redução do salário-debenefício nos casos em que ocorre a conversão do benefício previdenciário de auxílio-doença em aposentadoria por incapacidade permanente.
A par disso, o Ministro Barroso (op. cit, p. 234) salienta uma íntima relação do princípio da razoabilidade com o princípio da isonomia, servindo o primeiro como parâmetro para aferir se o fundamento da diferenciação é aceitável e se o fim visado pela desigualdade é legítimo. Sob essa perspectiva, não há racionalidade na desequiparação estabelecida pelo art. 26, §§ 2º e 5º, da EC 103/2019, pois confere ao segurado acometido por uma incapacidade mais severa um benefício flagrantemente inferior àquele concedido ao acometido por uma incapacidade mais branda, ou seja, ao invés de tratar desigualmente os desiguais a fim de gerar uma isonomia material, a norma em questão desarrazoadamente agrava ainda mais a desigualdade. Trata-se, assim, de desequiparação arbitrária, caprichosa, aleatória, sem qualquer adequação entre meio e fim, razão pela qual se mostra juridicamente intolerável.
Além do mais, é inconteste a contrariedade ao art. 1º, inciso III, da CF, tendo em vista que os direitos fundamentais referidos nesta decisão são reputados densificações do princípio da dignidade da pessoa humana que é, segundo a doutrina e a jurisprudência nacionais, o valor-fonte da ordem político-jurídica brasileira.
Uma vez constatadas tais incompatibilidades com o Texto Constitucional, a única maneira de solucionar a supramencionada “antinomia de valoração” é o reconhecimento da inconstitucionalidade do art. 26, §§ 2º e 5º, da EC 103/2019. Tem-se, portanto, uma Emenda Constitucional flagrantemente inconstitucional (consoante aborda com propriedade Jairo Lima, em "Emendas Constitucionais Inconstitucionais, ed. Lumen Iuris, 2019). Inconsticional por afronta ao princípio da isonomia (art. 5º, CF/88), da seletividade e da irredutibilidade do valor dos benefícios (art. 195, CF/88), da proporcionalidade e da razoabilidade, tudo permeado pelo valor máximo e de densidade axiológica mais importante da dignidade da pessoa humana.
Ante a lacuna gerada pela declaração incidental da inconstitucionalidade do art. 26, §§ 2º e 5º, da EC 103/2019, o valor do benefício previdenciário de aposentadoria por incapacidade permanente deve corresponder a 100% do salário-de-benefício, tal como estipulado na regra então vigente antes da alteração (art. 29 e § 5º da Lei nº 8.213/91), de sorte que a decisão embargada está correta, pois consonante com o presente entendimento, nenhum vício nela havendo a merecer correção pela estreita via dos embargos declaratórios.
Em suma, este juízo entende pela inconstitucionalidade do art. 26, §§ 2º e 5º, da EC nº 103/2019, ante a violação aos princípios da razoabilidade, da seletividade na prestação dos benefícios, da irredutibilidade do valor dos benefícios e da isonomia, todos subsumidos ao princípio máximo da dignidade da pessoa humana. Como consequência, supre a resultante lacuna normativa com a aplicação da regra então vigente para cálculo das aposentadorias por invalidez antes da alteração trazida pela referida EC nº 103/2019, qual seja, a do art. 29 e § 5º da LBPS.
Portanto, verifica-se que, em verdade, o INSS pretende a reforma do julgado, e não sanar eventuais vícios intrínsecos da sentença que, embora coesa e clara, não correspondeu integralmente aos seus anseios. Entretanto, encerrado o provimento jurisdicional, é vedado ao juízo alterar a sentença já proferida.
POSTO ISTO, conheço dos embargos (pela sua tempestividade), mas a eles nego provimento. P.R.I.
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MAURO SPALDING
Juiz(a) Federal
PROCESSO Nr: 0002554-62.2019.4.03.6323
Juizado Especial Federal Cível Ourinhos